Poucos conhecem tão bem o ofício de barbeiro e a alma da Princesa das Pontes como Ademar José de Azevedo, o Chorinho. Aos 71 anos, ele é mais do que o seu ofício sugere: é um símbolo da resistência de Muçum. Natural de Encantado, mas com a vida marcada por décadas de trabalho em terras muçunenses, Chorinho retornou recentemente à cidade após mais de um ano afastado por causa das enchentes que devastaram o município.
Por quase 40 anos, o profissional presenciou o desenvolvimento do município e a resiliência de sua gente. Sempre ao lado do povo, com sua tesoura em punho e o dom aperfeiçoado pelos anos de prática, o barbeiro se tornou parte da paisagem de Muçum. Depois das enchentes de 2023 e 2024, deixou a cidade, mas sempre prometeu voltar. E voltou.
“Se eu quisesse, podia ter botado a barbearia em Arvorezinha, podia ter botado em Anta Gorda, mas eu disse que só voltaria a trabalhar de barbeiro se fosse na cidade de Muçum, onde tenho meus amigos e construí minha vida”, conta.
Chorinho começou como engraxate em uma barbearia de Encantado. Aos 16 anos, recebeu uma chance improvável que mudou sua vida. “Um subgerente do presídio me perguntou se eu queria cortar cabelo. Eu disse que sim, mas não tinha como aprender porque ninguém me dava o cabelo para testar! Então ele falou com o juiz, e eu passei a cortar o cabelo dos presos, uns 70, 80 por dia. Só com a maquininha manual e a tesoura”, revela.
Foi ali, dentro do presídio, que a prática lhe ensinou o ofício. Quando voltou à barbearia, ganhou uma cadeira de presente dos colegas. A profissão estava selada. Durante um período marcante, manteve sua barbearia embaixo do antigo cinema de Encantado. Acima dela, funcionava a sala de exibição, e no andar de cima, ele residia. “E muitas vezes, era eu quem rodava os filmes. O cinema fechou, mas ficou na memória”, recorda com saudade. Após esse episódio, Muçum entrou no mapa de Chorinho e foi onde ele se estabeleceu como profissional e personalidade muito conhecida da comunidade.
A força da água desestabilizou tudo
“Eu não consegui nem entrar na barbearia, só passei na frente e vi que estava tudo quebrado. Em casa, a gente subiu no telhado pra se salvar. Sete pessoas no sobrado, e a água vindo, levando tudo. Eu disse: não quero mais ficar aqui”, relembra.
Foram meses longe. Primeiro, em um sítio perto de Soledade. Depois, mais de um ano em Anta Gorda. Sem bens, sem estrutura — mas com uma certeza: Muçum ainda era sua casa. Hoje, ele mora num local seguro, longe do alcance da água. E voltou ao que sabe fazer de melhor: cortar cabelo e ouvir histórias.
“A cidade está crescendo lá em cima, onde é mais seguro, e vai ser melhor do que era antes”, afirma, olhando com esperança para o futuro. “Sigo acreditando em Muçum. Tenho 71 anos e quero continuar ajudando meu filho e meu neto, que desde pequeno já queria ser barbeiro também”, comenta orgulhoso.
Além do retorno de um personagem conhecido em Muçum, outro lembrete que simboliza o pertencimento e reconstrução de seu povo é a permanência daqueles que poderiam ter deixado o município. Um lembrete de que, como ele, Muçum também pode se reinventar — mais forte, mais alto, mais vivo.
O mercado de Vitelmo e a força do bairro José Marcolin
Vitelmo de Souza, 60 anos, é um dos empreendedores que não só acredita em Muçum, como investe na cidade. Mesmo depois de enfrentar duas enchentes devastadoras, ele não recuou. Pelo contrário: expandiu.
Morador do bairro José Marcolin, onde também mantém seu mercado há mais de três décadas, Souza é um dos comerciantes que optaram por ficar e reconstruir. “Na realidade, a gente não pensou em desistir. Estamos há muitos anos aqui, e como o comércio já tem história, mudar tudo seria muito complicado”, explica.
A história do seu mercado começa em 1992, quando ele decidiu trocar o emprego em outra empresa para comprar um pequeno comércio. “A comunidade estava sentindo a necessidade de um empreendimento desse tipo. Desde então, nunca saí daqui. Só mudamos de local, mas sempre dentro do bairro José Marcolin”, salienta.
As enchentes atingiram o comércio, causaram perdas e abalaram a rotina da comunidade. “Foi bem complicado para toda a população. Felizmente, conseguimos salvar a maioria dos produtos com ajuda de colegas, funcionários e vizinhos”, conta.
Ainda assim, Vitelmo fez o que poucos esperavam: abriu um novo espaço, com um açougue e uma loja de utilidades. “Muitos me acharam corajoso, com tudo o que aconteceu. Mas eu não tinha espaço no mercado atual para ampliar. Sempre vendi carne, mas de forma limitada. Com a oportunidade de uma nova sala, decidimos investir”, revela.
A expansão ocorreu há pouco mais de um mês — sem festa, sem inauguração oficial, só com trabalho. “Foi tudo muito corrido. Mas mesmo nesse pouco tempo, estamos contentes. O pessoal está vindo, até porque não tinha outro comércio oferecendo esses produtos aqui no bairro”, salienta.
Com esposa e duas filhas, Vitelmo afirma que o negócio é também um compromisso com a cidade e com quem vive nela. “Se todo mundo pensa em parar e sair, o povo também fica sem opção de compra. Acho que a gente tem que ser persistente, seguir lutando para atender a comunidade.” Para ele, Muçum está num processo lento, mas firme de reconstrução. “O estrago foi muito, foi impactante, mas acredito que tem tudo para melhorar sim”, conclui.